quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Um tempo para a chuva

O autor sai à rua no início da tarde para resolver besteirices da vida cotidiana. Sabe que vai chover e mesmo assim insiste em sair. Leva seu guarda-chuva e no bolso nenhum centavo carrega, dependente do cartão magnético e das facilidades da vida pós-moderna.

Mal chega ao destino e a chuva anunciada se derrama, firme como o olhar de um apaixonado. Tudo bem, já que pretende demorar pelo menos duas horas. Duas horas que passam sem a esperada estiagem e o autor, à hora de ir embora, se depara com uma tempestade. Não uma tempestadezinha dessas de verão e só, é uma chuva ladeada com vento frio, quase de agosto sulista, que por pouco não carrega as coberturas dos corredores e estacionamentos. A água escorre pela rua lavando e levando o que encontra.

E lá se foi o autor também, boiando na correnteza. Mas fique calmo, leitor, é só uma metáfora. A água o levou a pensar sobre a parecença entre a enxurrada e o hábito diário de escrever do artista.

Todos os dias há uma tela em branco à sua frente e uma infinidade de oportunidades impossível de mensurar. Há um desejo que o carrega dali para lugares incomuns. E depois uma infinidade de outros desejos. Mas é preciso escolher um caminho e trilhá-lo até o fim. O leitor não imagina nem em sonho o que se passa à cabeça do autor até alcançar o ponto final. Ele tem um prazo, o leitor não. Tem um desejo, o autor pretende algo para o leitor, mesmo ciente de que este só quer, quando quer, se divertir.

Trava-se entre ambos uma ligação de tédio e paixão. Uma espera angustiada entre imaginação e palavra. Pois não pensem os senhores que o verbo criar, sob a coação do tempo humano, é uma lufada de risos, pois não é. É, por vezes, uma lágrima clichê que se mistura nessa enxurrada. Lágrima solitária que não pode nem marejar o olhar, o operário deve prosseguir enfiando imaginação na máquina de escrever e produzindo mundos para o leitor na próxima manhã.

Não reclama o autor. Nem chora, na verdade é só outra metáfora. Quer apenas um tempo para ver a chuva cair sem se preocupar com mais nada que não seja a poesia do som da água e o charme da névoa que o vento provoca quando as gotas ricocheteiam na matéria sólida.

Poesias e tempos entre parênteses, o autor se vê na chuva e sem dinheiro no bolso, apenas um cartão de plástico sem utilidade prática diante do toró que se apresenta. A um intervalo tenta atravessar a rua, mas se perde na corrente do rio. Só uma hora humana depois é que se vê seguro, em casa, e já precisa deixar a mente voltar a pensar no tempo que perdeu.

Aliás, ele pensa que, como em Belém, uma chuva diária na sua rua seria de todo bem vinda. Seria, ao menos, um forçoso tempo ocioso diante do oceano de palavras que é a mente do autor, cheio de tempestades o mar, todas animadas pelo ciclo dos ponteiros do relógio.

Anderson Nascimento - Impressão digital do mundo

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