quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A Solteirona

A Solteirona - 2015

Dan Porto

Rosa Maria não gostava que a chamassem de solteirona, mas compreendia a tacanhez do povo de Bela Vista. Era mulher, morava sozinha desde a morte dos pais, tinha quase quarenta anos e ainda não havia se casado! Como não bastasse, engrossavam o falatório por ser ela amiga íntima do farmacêutico, embora amiga íntima não passasse de amiga presente e admiradora, sendo ele casado e tudo. Encontravam-se regularmente às quintas-feiras para conversa de duas ou três horas, bolo, café e licor. “É religião”, ele dizia. A esposa condenava, mas ria da situação quando ele saía e dizia aos vizinhos que Rosa Maria precisava de um marido, função para a qual ela pensava ter encontrado a pessoa perfeita, o primo que logo chegaria do interior.

O primo a quem ela se referia viria à cidade para estudar Direito. Nas cartas que o rapaz enviava, sempre duplas, uma à prima e outra ao primo emprestado, o moço se mostrava muito educado e firme naquilo que pretendia, sendo esse o motivo usado pelo próprio farmacêutico para sugerir à esposa que se fizesse o convite ao recém-chegado para que ficasse hospedado em casa, afinal, “por que pagar pensão, comer e dormir mal quando a prima possui tão grande residência?”.

Quando o primo chegou à cidade e veio viver em Bela Vista, hóspede da prima, Rosa Maria estava muito ocupada com a reforma do telhado da casa para o inverno. Mandou trocar telhas e caibros, reparar calhas e janelas. Era muito trabalho para se dar conta de vizinho novo, tanto que cancelou o chá semanal com o amigo, o qual, se sentindo dispensado, aproveitou para levar o primo ao centro da cidade. Os dois se conheceram na ocasião em que o casal viajara ao interior para o casamento de uma parente. O farmacêutico, cujos pais haviam morrido quando tinha ele vinte anos, se afeiçoou muito à família da esposa, especialmente ao primo. O moço fora sempre um cavalheiro, aliás, só aceitou o convite da hospedagem depois de muita insistência. “Veja”, dissera para o rapaz, “você vai do interior, não conhece nada na cidade grande, ficar conosco será mais seguro”.

Rosa Maria fez cara feia quando ouviu baterem à porta. Estava envolvida cobrindo móveis para proteger da poeira e foi atender bem a contragosto. Era a mulher do farmacêutico, sorriso aberto, pano de prato ao ombro. “Não quero atrapalhar a senhorita, nem vou entrar, soube da reforma, mas quis convidar para o jantar. Imagino que esteja cansada, essa poeira, empregados... quero dizer, aceita jantar conosco esta noite?”. Muito surpresa, Rosa Maria agradeceu e aceitou o convite. “Ai, que bom!”, a mulher saltitava de contente. “Esteja lá às sete em ponto”, alertou. Depois saiu apressada a acenar.

Por volta das seis, dispensados os empreiteiros, higiene feita, Rosa Maria começou a se preparar para o jantar. Escolheu um vestido azul-marinho intencionalmente sóbrio, cheirou os cabelos com extrato de flor de laranjeira e os prendeu em um coque baixo. Sete em ponto bateu à porta da casa do farmacêutico. Uma esposa animada e bem vestida a recebeu com sorrisos e rapapés, tantos, aliás, que Rosa Maria desconfiou. “Entre, querida”, “como está bonita”, “que belo vestido”, mas nada que saía da boca da mulher parecia combinar com seu jeito calado, observadora, durona, quase masculina. Rosa Maria encontrou o amigo acabrunhado e aparentando mau humor. Mal teve tempo de cumprimentá-lo e a esposa lhe saltou à frente. “Minha cara Rosa, este é um primo meu do interior”, disse a mulher, e apresentou o primo e logo fez com que ambos se sentassem lado a lado e foi providenciar uns “petiscos para abrir o apetite”. 

O rapaz era tímido, muito cortês e trazia no olhar certo brilho vivaz, talvez uma curiosidade contida. Rosa Maria tentou puxar conversa com ele, mas só obteve monossílabos, e antes que a mulher voltasse da cozinha com a bandeja de salgadinhos, havia entendido o motivo do jantar, das gentilezas e o mau humor do amigo. Quando lhe dirigiu a atenção, contando de como ia a obra, o telhado totalmente recuperado, “agora vou me livrar da poeira”, o farmacêutico ouviu sem demonstrar interesse.

Em seguida voltou a esposa com suas faceirices e irrompeu a falar, contar da viagem do primo à capital, o objetivo de estudar Direito e de como deveria se tornar um “excelente doutor, isso sem contar o homem de bem e educado que é desde muito jovem”. Foram tantos assuntos em torno do primo e tantos risos que o jantar pareceu ter sido esquecido. O farmacêutico foi obrigado a perguntar se comeriam algo de verdade àquela noite ou seriam forçados a se empanturrar de salgadinhos.

“Então, Rosa, nos conte da obra em sua casa”, pediu a esposa durante o jantar. O marido e o primo comiam, ambos demonstrando mais interesse ao prato do que ao assunto das duas mulheres. A esposa quase não comia, tão absorta estava no que Rosa Maria narrava: a dificuldade de tratar com os empreiteiros, a poeira, a demora, o preço dos materiais... “Eu posso supor o quanto deve estar sendo difícil para uma mulher como você fazer isso, eu mesma não seria capaz”. Nisso ela sugeriu que o primo poderia ajudar Rosa Maria a terminar a obra, para aparente surpresa do rapaz, ao que a própria agradeceu, “mas não é preciso, imagine, eu dou conta disso sozinha, papai me ensinou tudo o que preciso saber para terminar essa reforma”.

Embora em silêncio e demonstrando mais interesse à comida do que ao assunto que a esposa alimentava, o farmacêutico mal sentia o gosto do prato, remoía pensamentos. Não entendia as intenções da mulher, mas era lógico que tentava casar o primo com Rosa Maria, pensando, com isso, em afastá-lo, ao marido, da amiga. Também não entendia a limitação da amizade entre um homem e uma mulher, afinal, pensava, havia vinte anos de diferença entre os dois, poderia ser seu pai! Ao mesmo tempo, diante da desenfreada pressão da esposa, temia que o primo se assustasse e quisesse se mudar para uma pensão ou, o que seria pior, partir!

Mas Rosa Maria não perdeu a firmeza característica de sua personalidade em nenhum momento. Resistiu às sugestões sarcásticas da esposa sem revidar. Só não o fez, diga-se, por respeito ao amigo que parecia ansioso e envergonhado, e decoro perante o primo, a quem via pela primeira vez. Retirou-se após o cafezinho sob os protestos da esposa, desejosa de que Rosa Maria ficasse mais tempo. “Ah, mas então volte. Você é tão simpática e espirituosa, não é mesmo, primo?”. Constrangido, o rapaz concordava e, pela primeira vez, depois de olhar para o farmacêutico, sorriu para Rosa Maria, enquanto se despediam.

A semana seguinte foi luminosa para Rosa Maria. A reforma fora concluída, a casa devidamente limpa e na quinta, como de costume, recebeu o amigo para o chá, mas, desta vez, acompanhado do primo. Com a educação costumeira, o farmacêutico pediu desculpas, primeiro pelo jantar, dizendo que não compreendia o comportamento destoante da esposa, e depois pela presença do primo, que também se desculpava, pois não haviam conseguido se livrar da ideia fixa da mulher que insistiu para que o rapaz o acompanhasse.

Rosa Maria riu dos cuidados dos dois: “Não há nada a se desculpar, senhores”. A tarde que se seguiu foi memorável, os três tomaram chá e conversaram alegremente até o Sol se pôr. O primo mostrou-se muito mais à vontade do que naquela noite. “A senhorita Rosa é mesmo encantadora”, dizia. E riram os três. E trocaram confidências. E riram mais ao se lembrarem das intenções da esposa do farmacêutico em casar o primo com Rosa Maria!

Para desespero da mulher, marido e primo passaram a visitar Rosa Maria toda semana. Saíam no início da tarde e só voltavam à hora do jantar. Com o tempo, o povo de Bela Vista passou a comentar a proximidade de Rosa Maria com o primo, o que levava a crer que os dois estavam interessados um no outro. A esposa não acreditava nisso e não estava feliz, o marido não se afastara da “amiga solteirona”, e dizia amiga solteirona com sarcasmo na primeira e peso na última palavra.

Contudo, o farmacêutico nunca esteve mais feliz e a situação lhe parecia excelente. Mantinha a amiga, aliás, a amizade se reforçara nesse período, e as quintas-feiras na casa de Rosa Maria se tornaram o único momento em que os dois, farmacêutico e primo, podiam ficar juntos e à vontade, longe dos olhos da esposa e resguardados sob a lealdade daquela amiga.

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