domingo, 15 de março de 2015

Entrevista com Lucas Reis Gonçalves

Descobri a página do Lucas na internet por acaso. Aos poucos fui descobrindo a voz do avô do poeta e me identificando. Agora aí estão os dois.

Ao apresentar o primeiro livro do poeta Lucas Reis Gonçalves, um colega seu diz que ele é uma descoberta, e de fato acredito que o é. Quando Lucas escreve, não tem medo da palavra, a torce e retorce até encontrar nela aquilo que é a essência da poesia, a linguagem, nova, inusitada. E ainda acrescenta humor e crítica fina.

Divulgação
Acompanhe a entrevista que, gentilmente, ele me concedeu por e-mail, direto da Venezuela.


1. Tu estás para lançar, pela Penalux, “Poeta era meu vô”. Como será esse livro?

Esse é um dos materiais mais sinceros que já produzi. No começo, ele foi organizado para se publicar aos poucos, na internet. A página, com o mesmo nome, teve um bom acolhimento do público e, justamente por isso, resolvi coletar todos os textos e imprimir.

O Poeta, como a galera apelidou, conta sobre a relação inevitável entre um neto e um vô, que aparentemente sofre de uma doença terminal. Nesse relato, alternado entre capítulos de diálogos e outros de narração, dá para perceber uma forte conexão entre os dois personagens - tanto negativa como positiva. E essa conexão, esse atrito entre eles é que escreve toda a obra.

Falo sempre, e repito, que esse é um dos projetos mais verdadeiros em que já trabalhei. Cada ponto que ali vai escrito é pura essência desses personagens que sempre foram reais em mim e, por sorte do destino, em muita gente também. No começo da página, lembro de receber muitos depoimentos e mensagens contando casos similares, em que pessoas tinham perdido o avô ou a avó e sentiam, na pele, a mesma coisa que eu sentia em texto – e somente nele. A partir daí, eu já não sabia bem o que sentir. Não entendia se isso era bom ou se era ruim; se isso valia ser contado, se esse tipo de sensação era interessante de sentir ou não. O fato é que continuei e, por muito tempo, esse foi o meu alimento para terminar a história, para sofrer, morrer e gargalhar em cima do neto, do vô – do texto. 

Prévia da capa fornecida pelo autor

2. Tu moras na Venezuela. Há uma crônica tua, no Obvious, falando um pouco da situação do país, mas eu quero saber como está agora, como tu percebes a onda de protestos?

A Venezuela é foda, e é foda tá aqui. 

Não existe melhor oportunidade para alguém que quer crescer - como artista ou como pessoa - do que a crise. E esse país, como muitos, é cheio delas. Quando cheguei aqui, fiquei emocionado: duas semanas depois de eu desembarcar, o Chávez morreu, e uma onda de rumores já começava a se espalhar pelas ruas. Depois, o calor das eleições. Mais tarde, em 2014, os protestos e suas quarenta e poucas mortes. Escrevi sobre tudo isso, acompanhando de perto o desenrolar (ou enrolar) dessa trama grotesca que pertence ao dia-a-dia desses sujeitos firmes, os venezuelanos. Enquanto meu olhar estrangeiro tratava de descrever - quase sempre sem grandes opiniões - o que passava por nossas rotinas (e retinas), uma necessidade de SER GRANDE subia forte em mim. E ainda sobe: viver na Venezuela é luta todo o dia; luta para conseguir um sabão, luta para não ser assaltado, violentado no meio da rua, luta para não perder a vontade de levantar e trabalhar para ganhar o pouco que te dá para fazer o mercado do mês, e olha lá.

Mas o interessante é que ela é supercontraditória. Enquanto acontece esse tipo de coisa, a gente vê um país de mentes brilhantes que criam para cada situação difícil uma piada que traz muito mais risada que o choro que causou a origem dela. E é isso que eu tento explorar, essa capacidade humana (e venezuelana) de perceber um mundo controverso que cospe todo dia na nossa cara a realidade dura que é sobreviver. E assim a gente segue: sobrevivendo.


3. Como tu percebes o cenário literário brasileiro para poesia e para os novos autores?

Um tempo atrás escrevi um ensaio sobre a Literatura Viral e as (velhas) novas condições dos meios de comunicação de agora. Ele começa assim: 

"“Hoje todo mundo é poeta”, costuma dizer um amigo meu quando mostro para ele o último poema que, até então, escrevi. E eu sempre concordo e completo: hoje todo mundo é poeta; todo mundo é crítico; todo mundo é fotógrafo; todo mundo é jornalista; todo mundo é tudo o tempo todo em todo o mundo. E tudo isso aos olhos de todo mundo, ou quase."

Ali eu descrevo, com base no que já dizia há muito tempo Benjamin, como o desenvolvimento das tecnologias e o uso das redes sociais facilitaram a leitura e a escrita da poesia. E isso conforma o cenário para poesia e todos que são ou querem ser poetas hoje em dia. O espaço tá aberto, a corrida já foi largada, e tem muita gente correndo.

Escrever é duro, escrever dói. 
Escrever é sangrar muitas vezes; é coisa séria, mesmo que seja só brincadeira; é brincadeira, mesmo que seja coisa séria. Escrever não é uma carreira; 
escrever são todas as carreiras. }

Confira trechos do próximo livro:

ergueu as sobrancelhas, relaxou a boca num esboço fraco de sorriso, e tossiu. tossiu, melodiosamente, três vezes. até nisso o velho era bom. tossia no ritmo da poesia. e ainda abalado pelos versos secos da tosse - meio que tremendo -, mexeu os dedos da mão para deixar claro que tava vivo, que tava ali comigo, que era uma peça no mundo, e que funcionava. respirava forte, mas não profundo. soltava o ar em partes e engolia em partes menores, como se logo logo ele fosse acabar. mas não acabava. e eu ficava ali, do lado, roubando esse pouco de ar que o velho ainda tinha, desse pouco de vida que ainda tinha. deixei de respirar profundo. agora só respirava durante o intervalo da respiração do velho. me sentia melhor assim. ele abriu os olhos. me viu. o esboço virou sorriso. é meu vô - eu dizia comigo - é meu vô, é meu pai, meu poeta - eu dizia comigo. e eu sorri. ele, também sorrindo, suspirou profundo e voltou a fechar os olhos. já não sorria. o esboço, insistente, reapareceu. 
(Poeta era meu vô, capítulo 1)

* * *


- tem um cabelo na minha sopa.
- vai ver é teu.
- eu sou careca, seu desgraçado.
- vai ver é do cobertor.
- não, não é do cobertor. e parece um pentelho.
- eu me depilo, vô.
- putaquepariu. então é meu.
(Poeta era meu vô, capítulo 38)

* Lucas é poeta, gaúcho de Novo Hamburgo e atualmente mora em Caracas, na Venezuela. Em 2012 foi finalista do Prêmio AGEs de Literatura com o seu primeiro livro, Se soubesse o que dizer, diria em prosa (Paco Editorial, 2011), e, através dele, criou, juntamente com o músico Dado Vargas, um projeto de declamação poética: Eletropoeteria. Lucas nasceu em 1990 e atualmente escreve para sites de literatura (públicos e independentes). Integrou, recentemente, a Nova Coletânea de Poesia Gaúcha Contemporânea.

Nenhum comentário:

Postar um comentário