Ler o quê?

"Ler o quê?" é o novo nome deste projeto, agora com ações continuadas no meio digital, a partir do perfil @projetoleroque no Instagram.

#JulhoLiterario2022
A terceira edição contemplou a soltura de livros em coletivos da cidade de Curitiba. Foram distribuídos cerca de 100 exemplares.




#JulhoLiterario2020
A segunda edição foi composta por 20 vídeos com indicação de autoras e autores de 11 estados do Brasil.
Ainda, no janeiro seguinte (2021), publicou-se uma edição especial da Revista Subversa com textos dos participantes do projeto.





#JulhoLiterario2019
Abaixo, as indicações do projeto, via Facebook, na 1ª edição, em 2019:

Stone song - Caio Fernando Abreu
(Porto Alegre, 1996)

Eu gosto de olhar as pedras
que nunca saem dali.
Não desejam nem almejam
ser jamais o que não são.
O ser das pedras que vejo
é só ser, completamente.
Eu quero ser como as pedras
que nunca saem dali.
Mesmo que a pedra não voe,
quem saberá de seus sonhos?
Os sonhos não são desejos,
os sonhos sabem ser sonhos.
Eu quero ser como as pedras
e nunca sair daqui.
Sempre estar, completamente,
onde estiver o meu ser.

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O mundo é um moinho - Cartola

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

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Trecho do conto "Homens magros", do livro "A coleira no pescoço" (2006) - Menalton Braff

Os olhos abertos de Serafim investigavam os silêncios da longa noite. Olhos parados, sem pestanejar, abertos até às lágrimas. Experimentou afastar-se das fartas carnes de Alzira e percebeu que o inverno finalmente havia chegado. Então era inverno, como já sabiam suas pernas finas e treinadas. Mesmo assim manteve-se distante, disposto ao sofrimento. Precisava agora ter certeza de que sobreviveria sem o calor da mulher. Era o que vinha pensando ultimamente porque a vida com tantas manchas escuras a contornar ia-se tornando uma tormenta, sem muito prazer. E o passado não se deixava apagar. Por mais que esfregasse, não desaparecia, cicatriz que se carrega para sempre.

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Trecho do romance "Úrsula" (1859) - Maria Firmina dos Reis

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa.
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Trecho de "
O homem que roubava horas" (2007) - Daniel Munduruku

“Todas essas opiniões contrárias eram porque o homem tinha um estranho hábito: ele roubava horas. Como assim? Não se sabe direito. Ele roubava a pressa das pessoas”.
“A praça estava cheia quando o homem falou:
- Eu roubo as horas para lhes dar tempo.
Tempo de aprender a usar o tempo.
Quem tem hora não tem tempo: tempo de olhar o tempo.
Será que vai chover?
Será que as flores já abriram?
Como será o arco-íris?
Qual a cor dos olhos dos meus amados?
Temos tempo para isso? Não!
Isso ocupa muitas horas.
E tocamos nossas vidas, olhando os relógios que marcam as horas de nossas vidas, e esquecemos de marcar nossas vidas no tempo!”
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Contornando” (18/11/2018) - Poeta da Colina

A vida é cheia de limites
Não é mesmo
Os sentimentos no caso
São os contornos da alma
Eu também queria aprender a fugir
Do que se carrega no olhar
Mas no fim só me resta confessar
A esperança não é minha

Essa é a mais nova fronteira
O ímpeto, a coragem, a felicidade
São visitantes que se esgotam
O cansaço que se projeta no corpo
Não se compara com o que esconde a face
Neste oceano que é viver
Ninguém escapa das tempestades

Trancado aqui dentro
O sonho esmaece em um suspiro
A alegria não equilibra o peso
O tempo escorre como se fosse findar
Por que não jogar as âncoras?
Por que não se entregar ao mar?

Mas quem superou os limites
Quem continuou mesmo avisado
Quem amou mesmo sem carinho
Que fez pela primeira vez
Descobriu na insistência
Temos que ser mesmo depois da esperança
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Trecho de "Elogio da Leitura" - Mario Vargas Llosa
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"Algumas vezes me perguntei se escrever não seria um luxo egoísta em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, onde a cultura era um privilégio de tão poucos."
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Trecho de "On The Road" - Jack Kerouac

"Assim, na América, quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? A estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria, reluzindo pela última vez antes da chegada da noite completa, que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia, e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice."
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Trecho de "O Inimigo Público" - Aguinaldo Silva

"Acordou às nove horas da manhã - era sábado. Ouviu, ainda estremunhado, a vizinha da esquerda perguntar lá nos fundos, por trás da janela fechada:
- Quer café, seu Edmílson?
Respondeu que não, mal acordara. E não lhe disse, mas queria ficar ainda um pouco na cama, olhando pela última vez as goteiras do teto, tão incômodas nas noites de chuva."

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Trecho do conto "O dilema de Bárbara" (Revista Helena, n. 6, 2017) Maria Valéria Rezende
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"Agora é a última vez, se Deus quiser! Porque a nota que traz dobrada no sutiã completa, certinho, o tanto que precisa para o material de construção, conforme os cálculos de Vadinho. A compra mesmo, só vai fazer amanhã."

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Trecho do romance "Os lençóis e os sonhos" - Orlando Senna

"Ninguém dormiu. Durante toda a noite, entre correria e prisões, varejaram boatos desencontrados sobre a fuga do coronel e seu estado-maior para Macaúbas, onde a cordilheira descamba para deixar passar o rio São Francisco, ou para as barrancas de Xique-Xique, onde reorganizaria seu exército de jagunços. Força para tanto tinha, Coronel chefe de Coronéis, senador do estado da Bahia, senhor dos campos de batalha. Noite de mexericos e tensões, ferida pelo medo, vilipêndios, heresias."

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Trecho de "O Aleph" - Jorge Luis Borges

"Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que em nenhum instante se rebaixou ao sentimentalismo ou ao medo, notei que os porta-cartazes de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarro; o fato me tocou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que aquela mudança era a primeira de uma série infinita." 

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Livro Aberto - Vitor Ramil (do álbum Foi no mês que vem)

Essa cama imensa consumindo a noite
Esse livro aberto como alegoria
O abajur perdido em sua luz
Essa água quieta desejando a sede
O controle girando no ar
A TV remota em sua fantasia
Uma alegria que não vai passar
Se você vier

Esse teto frágil sustentando a lua
Esse livro aberto como uma saída
O tapete e seu plano de vôo
O lençol revolto antecipando o gozo
Essa velha casa de coral
Essa concha muda que o meu sonho habita
A paixão invicta que não vai passar
Se você vier

Esse rádio doido de olhos valvulados
Esse livro aberto como uma sangria
Esse poema novo sem papel
O papel que cabe aos meus sapatos rotos
O meu rosto que o espelho não vê
A janela imóvel em seu desatino
Esse meu destino que não vai passar
Se você vier

Esse quarto agindo à minha revelia
Esse livro aberto como uma indecência
O desejo é um naco de pão
A ilusão exposta em tanto desalinho
Uma tecla insiste em bater
No relógio o tempo é uma saudade tensa
E essa cama imensa que não vai passar
Se você vier

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Trecho do conto "
As Pérolas de Cadija" (Gosto de África, histórias de lá e daqui) - Joel Rufino dos Santos

"Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

“Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.”

Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

– Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

– Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites de horrorosos caminhos."

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Trecho de "Vigiar e Punir" - Michel Foucault

"Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder."

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Trecho de "O Alquimista" - Paulo Coelho

"A lenda pessoal é aquilo que você sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua lenda pessoal.
Nesta altura da vida, tudo é claro, tudo é possível, e não temos medo de sonhar e de desejar tudo aquilo que gostaríamos de fazer. Entretanto, à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.
Esta força que parece ruim, na verdade está ensinando a você como realizar sua Lenda Pessoal.
Está preparando seu espírito e sua vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você quem for, quando quer com vontade alguma coisa, é porque este desejo nasceu na alma do Universo.
É sua missão na Terra."
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Trecho de "
Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez
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"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos."

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Trecho de "O Velho e o Mar" - Ernest Hemingway

"Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente."

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Trecho de "A Metamorfose" - Franz Kafka

"Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que
parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha
dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se
desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu? - pensou."
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"Meu casamento gay" - Marcelino Freire

Não preciso dessa igreja para casar. Desse altar de ignorância não preciso. Digo isso a Murilo, meu marido. Meu bem. Disseram que o novo Papa, o Francisco, é contra o casamento gay. Eu também. Digo: contra esse tipo de casamento eu sou. Dentro dessa doutrina retrógrada não estou. Tô fora. Não é o Papa quem vai afirmar que a nossa união é legítima. Pobre deste Francisco que não crê na nossa palavra salvadora. Murilo, meu anjo. Eu me lembro. Do dia em que a gente se encontrou. No mundo. Aconteceu um milagre, de repente. Àquele momento eu fui feliz para todo o sempre. Eu já sabia. Desde aquele dia em que fomos escolhidos. Um para o outro. O futuro que construímos a partir dali. Meu tesouro! Não é o Papa e nem ninguém que vai destruir. Evangélicos maquiavélicos também não conseguirão pôr abaixo a fortaleza deste nosso sentimento. Meu querido Murilo. É isto o que estou te dizendo. Não liga. Não fica chateado. Não espera da igreja a bênção que, todo dia, eu te dou. Ao teu lado, até que a morte nos separe, meu amor.

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Trecho de "Quem tem medo do feminismo negro?" - 
Djamila Ribeiro
.
"Aprendi a jogar xadrez aos seis anos, na União Cultural Brasil-União Soviética, lugar onde os comunistas da cidade de Santos levavam seus filhos para fazer cursos ou para se divertir nos fins de semana. Aos oito, fiquei em terceiro lugar no torneio da cidade. Lembro que senti vergonha durante a premiação, com todas aquelas pessoas me olhando. Meu nome saiu no maior jornal da cidade, e meu pai o mostrava orgulhoso a todos que iam a nossa casa.
Mas todo dia eu tinha que ouvir piadas envolvendo meu cabelo e a cor da minha pele. Lembro que nas aulas de história sentia a orelha queimar com aquela narrativa que reduzia os negros à escravidão, como se não tivessem um passado na África, como se não houvesse existido resistência. Quando aparecia a figura de uma mulher escravizada na cartilha ou no livro, sabia que viriam comentários como “olha a mãe da Djamila aí”. Eu odiava essas aulas ou qualquer menção ao passado escravocrata — me encolhia na carteira tentando me esconder."

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Poesias de Elisa Lucinda:

Reconstituição


Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
qual era a bebida...
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.

A saudade era dela
A bebida era o beijo.

Zumbi Saldo


Zumbi, meu Zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamerindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.
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Trechos de "Ode Marítima" - Álvaro de Campos:

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

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Trecho de "O primeiro beijo" - Clarice Lispector

"Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

– Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
– Sim, já beijei antes uma mulher.
– Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo."

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O escritor moderno (Jornal Cândido, julho 2019) - Rogerio Skylab

um escritor sem editora
(um músico sem gravadora),
ao léu, invisível,
sobrevivendo de vento e
sem fome
— sua forma sutil

incógnito e sem nome
e sobretudo sem fome,
um escritor moderno
que resiste a escrever

e cuja dieta o fez assim:
uma sombra
do que poderia ser e não foi

um trânsfuga
exilado de si,
o que o faz percorrer
quilômetros por dia

apresento-vos essa piada:
o escritor moderno.
um pária
sem pais
e país

quase inverossímil:
não tem peso, cor, volume

deixa pouco rastro,
zomba dos que
o pesquisam em universidades
e quase não sai de casa

pouco afeito à política,
o escritor moderno não lê jornal,
não vê TV
e se escreve algo,
rasga em seguida

gosta tanto de rasurar
que a sua obra completa
é um compêndio de rasuras

quando tenta se espelhar
em alguém,
se afunda

fica então congelado
como se tivéssemos dado pausa

e quanto mais costuramos
uma imagem,
desaparece

o escritor moderno é um poço
de águas estagnadas
e sobre o qual
só ouvimos eco

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Trecho de "A Nova Califórnia" - Lima Barreto

"Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia —um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso."

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Trecho de Felidae, romance alemão de Akif Pirinçci

"Tudo começou com a mudança para aquele prédio maldito.
O que mais odeio na vida, e com certeza também devo ter odiado nas minhas vidas passadas, já que tendo a crer na teoria da reencarnação nos meus momentos de filosofia, são as mudanças e tudo o que tem a ver com elas. A menor irregularidade no meu dia-a-dia já me faz cair nas águas da mais completa depressão, da qual só consigo me levantar com muito autodomínio. Mas o meu simplório companheiro Gustav e os de sua espécie gostariam de mudar todas as semanas de seus queridos lares."

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Trecho de "Um velho que lia romances de amor" - Luis Sepúlveda

"O céu era uma inflada pança de burro que pendia ameaçadora a poucos palmos das cabeças. O vento morno e pegajoso varria algumas folhas soltas e sacudia com violência as bananeiras raquíticas que enfeitavam a fachada da delegacia.
Os poucos habitantes de El Idilio mais um bando de aventureiros vindos das redondezas se reuniam no cais, esperando a vez de sentar na poltrona portátil do doutor Rubicundo Loachamín, o dentista, que aliviava as dores de seus pacientes mediante um curioso tipo de anestesia oral."

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Minha vontade (1967) - Clementina de Jesus

Quero viver como um passarinho
Cantar, voar sem direção
Quando quiser construir meu ninho
Hei de encontrar um coração
Por enquanto eu quero viver
Com toda liberdade
Cantando aqui, pousando ali
Esta é a minha vontade

Não, eu não quero prisão
Para o meu coração
Eu não quero
Será bem triste o meu fim
Se eu não conseguir
Ter a minha vida assim

Será
Será bem triste o meu fim
Se eu não conseguir
Ter a minha vida assim

Quero viver
Quero viver como um passarinho
Cantar, voar sem direção
Quando quiser construir meu ninho
Hei de encontrar (o que?) um coração

Por enquanto eu quero viver
Com toda liberdade
Cantando aqui, pousando ali
Esta é a minha vontade
Quero viver

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Trecho de "Lavoura arcaica" - Raduan Nassar

“Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)."
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História pra ninar Gente Grande (Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino. Intérprete: Marquinhos Art'Samba) - Samba de 2019 da Estação Primeira de Mangueira

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

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